Certa noite acordei num movimento súbito.
O corpo suado, ainda se recompondo de um estranho sonho. Olhei ao redor. Escuridão. Tateei a cama em busca de algo que fizesse luz.
Nada.
Toquei o meu corpo e senti que algo dentro ainda queimava. Senti medo e por isso não me movi.
Aquilo que surge à noite.
Fiquei imóvel por tempo suficiente para assistir ao brilho fraco dos primeiros raios do dia entrarem pela janela. Na luz do dia, finalmente fui capaz de levantar.
Em frente ao espelho nada havia mudado.
Ainda assim, tudo estava diferente.

 

Pode uma imagem ser capaz de mover a matéria? Ao menos, talvez, possa mantê-la em movimento. Que intenção é abrigada pelo corpo que ousa tomar para si a imagem? Moldar. O oleiro molda o barro até que ganhe forma. É um trabalho que exige atenção e cuidado, que toma tempo para que se torne aquilo que se espera.
A mão de deus escolhe a forma de cada corpo e o modela pacientemente até que se torne sua imagem e semelhança. Ao ganhar forma, o senhor da matéria, como um oleiro, decide se o trabalho acabou ou não.
Quem é o senhor da minha matéria?
Uma mesma matéria possui múltiplos estados. Tudo se transforma e os olhos que estiverem atentos serão capazes de perceber.
Os quatro elementos e a quinta essência.
Os ecossistemas mudam para sobreviver. O ecossistema é um corpo vivo.
Quem o observa também se muda.
Mudar é o lembrete contínuo de ser um corpo que vive.
Tudo aquilo que é verdade foi um dia imaginário. E tudo o que parece concreto um dia pode se quebrar.

“Existimos desde que nos descobriram?
Parece ser que nossa voz só se valoriza quando o dominante nos encontra, nos faz existir.
Como se a história anterior à colonização não existisse e tudo partisse do descobrimento da
América para estes indivíduos que não sabiam nem sequer onde estavam e que nós existíamos
 havia muitos anos livres das suas misérias imundas.De onde falamos hoje em dia? De uma terra
com história ou de um novo terreno descoberto por outros?”
Hija de Perra

 Quem é o senhor da minha matéria?

Somos homens trans, mulheres trans, trans não-bináries, transmasculines, intersexo, gênero fluído, lésbicas, bissexuais, drag queens, drag kings, mas também e sempre travestis, sapatonas, frangos, viadinhos, gays, mariconas, caminhoneiras, transformistas, cacuras, bissexuais, g0ys.
É sempre aqui, no corpo, o mais antigo ecossistema que conhecemos, que primeiro aprendemos a moldar. Matéria prima.

“O que nos for proibido, é o que desejaremos.”
Geoffrey Chaucer

Sentimos no corpo também os primeiros pesos das convenções coletivizadas.
O medo desestabiliza a matéria e, de repente, o ecossistema até então acolhedor, parece estranho, como se movido por uma força desconhecida.
Quase como se o medo fosse a condição para a manifestação do eu. A condição para habitar nosso próprio ecossistema.
E você se pergunta como dominar o medo.
Existe um antigo feitiço, mas antes de realizá-lo, alguém te diz: Escolha 3 coisas para perder. Pense bem.
O símbolo do elemento fogo é um triângulo virado para cima. Desejo de subir e engolir o ar.
Fogo e desejo figuram sempre num mesmo imaginário. Aquilo que, por não poder ser contido, assusta.
O caráter inflamável do desejo se manifesta quando as coisas fazem sentido no corpo.
Dominar o medo exige queimar. Manter a chama, enfrentar o risco.

“Um modo de vida pode ser partilhado por indivíduos de idade, estatuto e atividade
sociais diferentes. Pode dar lugar a relações intensas que não se pareçam com nenhuma
daquelas que são institucionalizadas e me parece que um modo de vida pode dar lugar a uma cultura e a uma ética. Ser gay é, creio, não se identificar aos traços psicológicos e às máscaras visíveis do homossexual, mas buscar definir e desenvolver um modo de vida.”
Michael Foucault

Abraço o mistério sempre que este se apresenta.
Lembro das palavras de Audre Lorde sobre como aprendemos a definir as nossas vidas a partir de uma certa ideia de luz.
Assim como ela, escolho buscar os lugares escuros. “Um lugar escuro por dentro, onde escondido e crescendo nosso espírito verdadeiro se ergue, lindo e firme como uma castanha”.
Penso na semente e em tudo o que germina. Dentro e fora.
Sementes espalhadas por todo lugar. Caminho pelo escuro abraçando o mistério e no escuro encontro outras sementes como eu.
Num Eterno retorno a um estado nascente, manifestações de vida apresentam-se poderosamente.

 

Recifest 2023
Equipe de Curadoria

 

Ander Beça

é realizador e psicanalista, atua em algumas frentes do audiovisual, como direção, montagem, preparação de elenco e atuação. Dirigiu o curta "O Olho e O Espírito" (2017) e está finalizando seu segundo filme, "Festa Infinita", fomentado pelo Funcultura Audiovisual. Mestre em Psicologia Clínica no Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP, orientado por Suely Rolnik. Possui graduação-sanduíche em Cinema e Audiovisual pela UFPE e pela Filmniversität Babelsberg Konrad Wolf (Brasil-Alemanha).

Chico Ludermir

Chico Ludermir é artista transmídia. (Re)cria, com palavras, imagens e corpo narrativas que dão a ver outros possíveis. Como realizador audiovisual, dirigiu o longa “O livro incompleto das deusas” e o videoclipe “Faz Ideia”, premiado no Festcine. Como artista visual, realizou as individuais “Entre” (Spa das Artes) e “O nascer é comprido” (Fundaj). É autor de diversos livros, dentre eles o de contos de não ficção “A história incompleta de Brenda e de outras mulheres”. É jornalista, mestre em Sociologia e educador popular no projeto Coquevídeo.

Mariana Souza

é curadora de Cinema com foco nas fronteiras entre linguagens visuais e idealizadora da Correnteza – Mostra Internacional de Cinema Atlântico. Idealizadora do curso “O cinema lésbico e as práticas de visibilidade”. Sua pesquisa volta-se aos estudos das heranças da diáspora negra e da presença indígena na América e sua influência na cultura visual contemporânea e nas representações desviantes de feminilidade no cinema.

Celebrando a Diversidade LGBTQIA+: Mostra Internacional e Div.A no Recifest 2023

A Mostra Internacional e a Mostra Div.A – Diversidade em Animação, são duas mostras inspiradoras e impactantes, com uma duração total de 80 minutos, que abordam questões essenciais e experiências de indivíduos LGBTQIA+.

Na Mostra Internacional, em “Love, Barbara“, somos transportados para a vida de Barbara Hammer, uma pioneira cineasta experimental e lésbica icônica. Através da perspectiva amorosa de sua parceira de mais de três décadas, Florrie Burke, o filme revela não apenas o legado artístico de Hammer, mas também o amor profundo que floresceu entre elas.”Everyman” oferece um olhar íntimo sobre a transição de gênero de Jack, destacando o impacto social e as implicações pessoais dessa jornada. Com imagens envolventes e narrativa reflexiva, o filme ilumina as complexidades de viver autenticamente. “Hex The Patriarchy” explora a resiliência de Bex e Wren, amigas que enfrentam o bullying com um toque de magia. Essa narrativa ficcional oferece um vislumbre das lutas enfrentadas pela comunidade LGBTQIA+, enquanto enaltece a força e a determinação em superar adversidades.

A Mostra Div.A é a celebração da diversidade LGBTQIA+ através do meio da animação. “Christopher at Sea” mergulha nas profundezas emocionais de Christopher, que embarca em uma jornada transatlântica de autodescoberta. Ao explorar a solidão e a fantasia, o filme ressoa com as experiências únicas vividas por muitos indivíduos LGBTQIA+. “Central Tocaia” traz uma pitada de mistério e imaginação, onde um casal encontra surpresas nas ruas de Olinda. Esse conto animado destaca a importância de abraçar a autenticidade, mesmo quando confrontado com o inesperado. Nesta jornada cinematográfica, “Luv U Cuz” é um convite para embarcar em uma experiência que transcende o tempo, mergulhando nas nuances do relacionamento humano e na beleza da diversidade. Por fim, “A Menina Atrás do Espelho” oferece uma história tocante de autenticidade e liberdade. Atrás de um espelho mágico, uma menina transgênero encontra um mundo onde sua identidade pode florescer sem restrições, celebrando a jornada de autodescoberta.

Através da curadoria atenciosa dessas mostras, oferecemos um espaço para celebrar e honrar as vozes, as histórias e as experiências da comunidade LGBTQIA+. Essas narrativas profundas e visualmente ricas oferecem uma oportunidade para conexão, empatia e reflexão em um ambiente de celebração.

Alex Mello
Curadoria Internacional

Alex Mello

Alex Mello é cineasta formado pela UNESA. Está na direção e curadoria de filmes dos festivais e mostras: Rio LGBTQIA+ Festival Internacional de Cinema (2011 - 2023), DIV.A - Diversidade em Animação, entre outras. Atuou na curadoria de mostras de filmes no Recifest, Prêmio Maguey (Guadalajara - México), DiversAnima (Santiago do Chile), Noche de Monos (Santiago do Chile), entre outras no Brasil e no exterior.